A estruturação de negócios no setor de saúde exige escolhas estratégicas que equilibrem eficiência operacional, viabilidade econômica e conformidade legal. Entre as alternativas que têm ganhado popularidade nos últimos anos, destaca-se a utilização da Sociedade em Conta de Participação (SCP) para a contratação de médicos por hospitais e clínicas. Este modelo, no entanto, esconde riscos significativos que precisam ser cuidadosamente avaliados por gestores, diretores financeiros e pelos próprios profissionais de saúde.
O que é uma Sociedade em Conta de Participação e como funciona?
A Sociedade em Conta de Participação representa uma modalidade societária com características peculiares, regulamentada pelos artigos 991 a 996 do Código Civil Brasileiro. Sua estrutura fundamenta-se na existência de dois tipos de sócios com papéis bem definidos:
- Sócio ostensivo: responsável pela administração, representação e execução das atividades da sociedade, atuando em nome próprio e com responsabilidade exclusiva.
- Sócios participantes ou ocultos: teoricamente atuam apenas como investidores, contribuindo com capital e participando dos resultados financeiros.
Uma característica essencial deste modelo societário está na delimitação clara estabelecida pelo artigo 991 do Código Civil: “a atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente pelo sócio ostensivo, em seu nome individual e sob sua própria e exclusiva responsabilidade”. Esta particularidade revela-se determinante para compreender os problemas decorrentes da aplicação deste modelo ao setor médico.
Aplicação da SCP no setor médico: condições e aparentes benefícios
Na prática médico-hospitalar, a implementação da SCP típica ocorre da seguinte forma:
- O hospital ou clínica assume o papel de sócio ostensivo, responsabilizando-se pela administração e gestão do negócio
- Os médicos são incorporados como sócios participantes (ocultos)
- A SCP é registrada na Receita Federal, obtendo CNPJ próprio
- O sócio ostensivo emite notas fiscais e responsabiliza-se pela contabilidade e recolhimento de tributos
Este arranjo tem sido promovido com base em supostos benefícios que, à primeira vista, parecem atraentes:
- Flexibilidade administrativa: facilita a inclusão e exclusão de médicos do corpo clínico, evitando alterações contratuais frequentes
- Aparente vantagem tributária: os valores recebidos pelos médicos seriam tratados como dividendos, isentos de imposto de renda na pessoa física
- Redução burocrática: dispensa certas formalidades necessárias em outras modalidades societárias
- Simplificação da gestão: evita a proliferação de contratos individuais de prestação de serviços
Entretanto, como veremos a seguir, estes benefícios aparentes ocultam riscos jurídicos, fiscais e profissionais que podem resultar em graves consequências para todos os envolvidos.
Desvirtuamento do modelo societário: a raiz do problema
O problema fundamental na aplicação da SCP para contratação médica reside no desvirtuamento intrínseco do modelo societário. A lei determina que apenas o sócio ostensivo (hospital/clínica) pode executar o objeto social. Porém, na prática médica, são os sócios participantes (médicos) que inevitavelmente exercem a atividade-fim, caracterizando uma contradição legal insanável.
Como explica o especialista Dr. Rafael Studart, “se o objeto social da SCP é uma atividade médica e o sócio participante médico está se vinculando regularmente sem poder exercer a atividade médica, se ele a exerce vai causar desvirtuamento de atividade. Essa é a raiz de todo o problema”.
Esta inconsistência estrutural cria uma série de vulnerabilidades jurídicas que podem ser exploradas por autoridades fiscais, previdenciárias e trabalhistas, colocando em risco tanto a instituição de saúde quanto os profissionais médicos.
Riscos tributários e fiscais: uma exposição desnecessária
A utilização de SCPs para contratação médica expõe os envolvidos a riscos tributários consideráveis:
- Descaracterização pela Receita Federal: as autoridades fiscais tendem a descaracterizar a SCP quando identificam que os médicos estão efetivamente prestando serviços, e não apenas participando dos resultados financeiros como investidores.
- Autuações fiscais com efeitos retroativos: em caso de fiscalização, as multas podem alcançar 150% do valor considerado sonegado, com cobrança retroativa de até cinco anos.
- Potencial caracterização de evasão fiscal: nos casos mais graves, a prática pode configurar crime tributário, com penas previstas de até cinco anos de reclusão.
Estes riscos se materializam porque, na essência, a operação realizada frequentemente não corresponde à natureza jurídica declarada. A Receita Federal tem se mostrado atenta a estas distorções, realizando autuações que desconsideram a forma jurídica adotada quando esta não reflete a realidade econômica da operação.
Implicações trabalhistas: fragilidade jurídica
Além dos riscos tributários, a contratação via SCP pode suscitar questionamentos trabalhistas. O Ministério Público do Trabalho tem atuado ativamente no combate a arranjos societários que possam mascarar relações de trabalho subordinado, gerando autuações e determinações de regularização.
A caracterização de vínculo empregatício, mesmo sob o manto formal de uma SCP, pode ocorrer quando se verificam os elementos típicos da relação de emprego: habitualidade, onerosidade, subordinação e pessoalidade. A presença destes elementos, comum na relação entre médicos e instituições de saúde, potencializa o risco de reclassificação da relação jurídica.
Os médicos como parte vulnerável: riscos específicos
Ironicamente, embora a SCP seja frequentemente apresentada como benéfica aos médicos, são estes os profissionais que enfrentam os maiores riscos neste arranjo:
- Contradição jurídica fundamental: como sócio participante, o médico teoricamente não poderia exercer a atividade médica, o que cria uma impossibilidade legal de exercício profissional regular.
- Vulnerabilidade em disputas jurídicas: em caso de litígios, os médicos frequentemente encontram-se em posição desfavorável, pois a documentação formal contradiz a realidade da prestação de serviços.
- Insegurança na cobrança de honorários: havendo inadimplência, o médico encontra dificuldades para reclamar seus direitos, pois legalmente deveria apenas participar dos resultados, não prestar serviços específicos.
- Responsabilidade solidária por obrigações sociais: os médicos podem ser responsabilizados por obrigações da sociedade, incluindo passivos fiscais e trabalhistas.
Este conjunto de riscos posiciona os médicos como a parte mais vulnerável da relação jurídica, expondo-os a contingências que poderiam ser evitadas com modelos de contratação mais transparentes e juridicamente adequados.
O posicionamento de entidades médicas e jurisprudência
Diante dos riscos identificados, diversas entidades representativas da classe médica têm se manifestado contra a utilização da SCP para contratação de serviços médicos:
- A Associação Médica de Minas Gerais (AMMG) afirma categoricamente que “é inadequada e ilegal a contratação de médicos para prestarem serviços médicos através da SCP; quer por desvirtuar o tipo societário, quer para burlar os regramentos trabalhistas e tributários”.
- O Sindicato dos Médicos do Ceará emitiu alertas específicos sobre o desvirtuamento de atividade e os riscos associados a esta prática.
O Poder Judiciário tem corroborado estas posições. O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do caso REsp 1.131.090/RJ, confirmou o desvirtuamento da SCP quando utilizada para prestação de serviços médicos, enfatizando que a execução direta de serviços médicos pelos sócios participantes viola os fundamentos legais desta modalidade societária.
Alternativas recomendadas: segurança jurídica e operacional
A recomendação predominante entre especialistas em direito médico e tributário é que os médicos constituam pessoa jurídica própria para prestação de serviços:
“Recomenda-se que os médicos constituam um CNPJ para exercer a atividade médica, através da prestação de serviços médicos, para que assim, seja possível firmar com as empresas terceirizadas e/ou clínicas e hospitais contratos de prestação de serviços médicos com o recebimento dos honorários, com emissão de Nota Fiscal”.
Esta alternativa proporciona segurança jurídica tanto para a instituição de saúde quanto para os profissionais médicos, além de viabilizar um planejamento tributário legítimo, sem exposição aos riscos de descaracterização.
Considerações finais: equilibrando riscos e benefícios
Apesar da aparente atratividade inicial da SCP para contratação médica, os riscos jurídicos, fiscais e profissionais superam significativamente os possíveis benefícios. A natureza desta modalidade societária mostra-se fundamentalmente incompatível com a prestação de serviços médicos por sócios participantes, o que invariavelmente conduz ao seu desvirtuamento legal.
O modelo traz riscos especialmente elevados para os médicos, geralmente os mais vulneráveis na relação. Recomenda-se a busca por alternativas legalmente seguras, como a constituição de pessoa jurídica própria pelos médicos para a prestação de serviços, estabelecendo contratos transparentes e juridicamente adequados com as instituições de saúde.
A contratação por SCP, embora possa parecer vantajosa inicialmente, representa uma exposição desnecessária a riscos legais significativos tanto para os hospitais/clínicas quanto para os médicos, com potenciais consequências administrativas, fiscais, civis e até mesmo criminais.
Na estruturação de negócios no setor de saúde, como em qualquer área, a segurança jurídica deve sempre prevalecer sobre aparentes vantagens de curto prazo, garantindo sustentabilidade e tranquilidade operacional para todos os envolvidos.
Este artigo foi elaborado pela equipe de especialistas da Expertzy Inteligência Tributária, com o objetivo de esclarecer questões fiscais e societárias relevantes para o setor de saúde. Para mais informações ou consultoria especializada, entre em contato com nossa equipe.
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